quarta-feira, 24 de março de 2021

É de raça!

"ISSO É DE RAÇA!"
- RAÇA! Soava tão profundo, tão dolorido. Eu não conseguia entender o era raça, o porque de tanta raiva da nossa"raça". Minha mãe nunca falava o porque dele, meu pai, falar assim. Cresci sem entender o que era raça e qual a "minha" raça.
Comecei a pesquisar sobre meus antepassados: descobri que minha mãe era neta de uma índia Guajajara ou Guajá? são povos diferentes, este último quase extintos. Povos indígenas que vivem no Maranhão.
 Depois me lembrei que meu pai as vezes falava: "guajá" é assim! isso quando queríamos dançar, brincar, cantar. Qualquer manifestação de alegria era motivo para meu pai brigar.
Minha mãe sempre calada. Qual seria a sua dor? Por que se calar? Nunca entendi.
Um dia, conversando com meu avô, pai de minha mãe, ele me falou que a mãe dele foi uma moça indígena raptada pelo meu bisavô. Eles são de uma cidade próxima a estes povos.
Ele contou que ela era uma menina, ficou presa por uns tempos, até "amansar". Disse que depois de "amansada", meu bisavô deu-lhe um nome e se casou com ela. 
Ela se tornou uma esposa calada, fazia os afazeres domésticos, teve cinco filhos. Mal conversava com eles. Era uma família calada. 
Passados poucos anos, ela começou a beber. Meu bisavô tinha alambique. Logo ela adoeceu. Talvez com menos de 40 anos, ela tenha falecido. Sofreu muito antes de morrer. Na sua agonia, ela pedia: "Me levem pro meu povo"...
Ninguém levou. Ou por desconhecimento, ou ignorância, não sei.
Anos foram se passando e essa história ficou na minha cabeça. Foi amadurecendo, eu tentando entender minha bisavó. Ela foi uma mulher jovem indígena que, como muitas outras no Brasil, foi retirada de seu povo, isolada, estuprada, abusada. Ninguém pensou nela como mulher, ou se pensou, era apenas um instrumento. 
As mulheres indígenas, assim como as mulheres negras escravizadas, foram arrancadas de suas raízes, seu povo, foram humilhadas, estupradas, maltratadas, perderam sua identidade. Sofreram e sofrem , sua geração posterior carrega a dor dessas mulheres.
Claro, o preconceito, a negação de identidade,e o próprio desconhecimento de sua história, faz com que a maioria dos povos brasileiros, não se reconheçam como seus descendentes.
Buscar nossa história não é fácil, pois nos foram negados, os colonizadores conseguiram apagar nossos rastros.
Mas procuro conhecer meus antepassados, o que lhes restou. E a história de minha bisavó é um começo.
Tento me colocar no lugar dela. Entender sua dor, sua perda de identidade, seu povo. Ela dizia me leve pro meu povo. Penso que ela nunca considerou os filhos que teve como povo dela. Sim. Ela fez sua obrigação de "escrava". Pariu. É duro pensar assim? Não. Eu a entendo perfeitamente. 
Quem não conhece os povos indígenas, não entende o que é seu povo. Sua família. Sim. É muito mais que parir. Envolve alma, espírito, antepassados, crenças, lutas, dor.
A dor de ser mulher ferida na sua essência, seu corpo e alma violentados. É uma dor eterna.
Eu também, como minha bisavó, fui ferida de morte. Tempos diferentes, histórias parecidas, situações idênticas. A dor? A mesma.
Por isso, sabendo da dor de minha bisavó, eu me identifico com ela. Como posso amenizar essa dor; Se sofro também?


➤ Pesquisando sobre os povos que habitavam a Região onde meus bisavós moravam, Os Guajajaras e Awá-Guajá, são deste local.
Os povos Awá-guajá foram quase extintos. Há controvérsia quanto aos que existem. Estudos dizem que muitos se misturaram aos Guajajaras, e um pequeno grupo sobrevive.
O Guajajaras continuam na luta, é o maior grupo do Maranhão. Hoje tem Sônia Bone Guajajara como sua maior líder. Sim. Uma mulher. Ela foi considerada uma das 10 mulheres mais influentes no Brasil em 2015.
É uma guerreira.


Sônia Bone Guajajara      Foto: Kamikia Kisedje



Mulheres Awá Guajá.













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